5 November 2024 4 min 5_11_2024_Reflexao_sobre_entrevista_ao_CEO_da_NOS

Li a entrevista do Público ao CEO da NOS, publicada ontem, e fiquei bastante desiludido.

A cima de tudo porque a NOS é uma das principais empresas tecnológicas portuguesas e da qual gostava de sentir mais ambição e até alguma iniciativa para querer liderar nesta área.

Mas o que li no artigo do Público foi uma posição e opinião algo derrotista e com pouca perspetiva de futuro.

Isto não é uma crítica ao CEO da NOS em particular, mas mais um apelo a que se mude o discurso que tenho visto a ser repetido incessantemente e que ele repete aqui também.

Uma pequena avaliação do que foi dito:

  1. “A Europa não tem nenhuma empresa com dimensão, com relevância, com impacto na inteligência artificial [IA]. No entanto, fomos os primeiros a regular.” - Isto é bastante complicado, porque apesar de não termos nenhuma empresa com dimensão, tal não se deve à regulação e muito menos ao AI act ou qualquer regulação das últimas décadas. As empresas com dimensão a que se refere são gigantes tecnológicos que fazem muito mais do que sistemas de IA, eg Google, Apple. E as exceções como a OpenAi beneficiaram e muito do dinheiro de muitos investidores de algumas dessas gigantes e de um ambiente académico competitivo e de qualidade.

    Depois, em relação ao impacto, acho que não podia discordar mais. Se olharmos para Portugal facilmente encontramos empresas como a Feedzai, ou a Unbabel que têm demonstrado mais do que relevância nas suas áreas de atuação. Quando expandimos esta lista para mais países europeus encontramos muitos casos de sucesso. Apesar da saída do Reino Unido ter fragilizado a UE nesta matéria, não deixa de ser importante de notar que empresas como a DeepMind foram fundadas ainda dentro da UE e bastou apenas um cheque gordo vindo dos EUA para mostrar que há talento por cá.

    Tal como é dito mais à frente na entrevista “…porque muitas das empresas, nomeadamente nos Estados Unidos", até são europeias…”. É verdade, mas não vejo porque razão estimular o crescimento e regular hão de ser incompatíveis.

  2. “somos muito rápidos a regular, mas não sei muito bem o que é que estamos a regular” ou “já temos uma regulação para a inteligência artificial, não temos a inteligência artificial” - Apesar da haver partes no AI act que foram claramente coladas com cuspo e muita pressão e lobby, nomeadamente toda a secção relacionada com general purpose AI, acho que este traz muita coisa positiva. A área da inteligência artificial já existe há muitas décadas e há vários anos que modelos de IA são usados de formas no mínimo duvidosas.

    Vejamos alguns dos muitos exemplos:

    Infelizmente ainda falta uma listagem mais extensiva de casos de uso que entram nos diferentes níveis de risco. Mas os primeiros passos estão dados.

    Por isso a frase, “é preciso criar o problema para se regular o problema”, parece-me no mínimo infeliz dados os efeitos absolutamente nefastos que hoje se conhecem.

  3. “Em termos de aplicação, nomeadamente machine learning, já temos um track record historial com alguns anos” … "Estamos também a incorporar esta vaga e temos na empresa exemplos concretos de processos, de actividades, de métodos de decisão assente em inteligência artificial, não é teoria” Isto é bastante animador, mas não deixo de sentir uma certa falta de ambição.

    As empresas com maior relevância na área são também as que mais contribuem na investigação científica, investindo em laboratórios internos e apostando na academia. Esta tem sido aliás uma das formas da Europa continuar a manter algum do talento e a não ficar completamente para trás, vejamos exemplo de Paris onde estão empresas como a DeepMind e a Meta e de onde algumas pessoas têm saido para criar startups como a Mistral ou a H.

    Como é óbvio empresas como a NOS não têm a mesma capacidade de investimento mas creio que também lhes compete contribuir de alguma forma para que se faça mais e melhor em Portugal e na Europa.

Discutir e criticar a regulação é importante e faz todo o sentido. Mas seria benéfico que a discussão fosse sobre o futuro, ou seja, o que é preciso mudar, o que falta, quais as dificuldades que as empresas estão a sentir para cumprir a regulação, etc.. Caso contrário a discussão não tem grande utilidade.

Pessoalmente, eu acho que o AI act faz um bom trabalho naquilo a que se propôs a fazer desde o início. No entanto, os ditos “progressos” na IA, que ocorreram desde o lançamento do ChatGPT, criaram uma grande pressão para regular este tipo de modelos. E para ser sincero acho que texto final do AI act falha em muitos aspectos relacionados com estes modelos. Por exemplo, treinar grandes modelos de linguagem, ou modelos generativos no geral, continua a ser algo que apenas alguns conseguem fazer e desse grupo muitos não são transparentes e não respeitam propriedade intelectual e dados privados.

Desta entrevista não percebi qual a visão de futuro e investimento da NOS para além de processos internos. E gostava mesmo muito de ver empresas como a NOS a investirem mais nesta área. Porque, tal como é dito, falta investimento na Europa e isso leva a que muitas startups sintam a necessidade de ir para os EUA.

Se queremos estar na vanguarda não basta adotarmos a tecnologia, temos de a criar. Tal como o Mário Draghi defende, temos de investir mais e ir para além do modelo que continua a reinar na Europa e em Portugal, muito na base do financiamento vindo do estado e dos bancos. E mais, se queremos inovação e estar na vanguarda, para além de investimento é preciso criar um ambiente competitivo e de qualidade, que atraia o melhor talento dentro e FORA DO PAÍS.

E pronto aqui fica a opinião que ninguém pediu mas que eu senti a necessidade de dar.

O meu email manuel.silva.goulao@tecnico.ulisboa.pt e as mensagens do meu LinkedIn (https://www.linkedin.com/in/manuel-goul%C3%A3o/) estão abertas para quem quiser discutir comigo estes e outros temas.